Com gesto de mão, ela me tirou da poltrona onde eu estava assentado e me chamou para junto da janela da frente da casa. Os ramos e a folhagem de uma trepadeira cobriam o espaço aberto da janela, fazendo dela um lugar ideal para quem quer observar sem ser visto. E ela apontou para três modestas casas, do outro lado da rua.
“São as casas das viúvas”, explicou ela. Não fazia muito tempo, a morte passara por lá, levando os três maridos. Agora elas estavam sós, as três velhinhas, nas casas vazias. Os vizinhos se compadeciam, e imaginavam que elas deviam se sentir como aquelas mulheres sicilianas que, mortos os maridos, se cobrem com sinistras roupas negras, pelos restos dos seus dias, para que todo o mundo saiba que a sua vida acabou. Se continuavam a viver era porque a religião não lhes permitia pôr fim à própria vida. Mas bem gostariam que a morte chegasse logo …
Eu ficava aqui na janela, olhando para as casas fechadas, imaginando aquelas pobres criaturas lá dentro, sozinhas, tendo apenas a tristeza e a saudade como companhia…. Foi então que comecei a notar sinais de que coisas estranhas estavam acontecendo naquelas três casas e naquelas três velhinhas. Aconteceu depois de passado aquele período em que, por medo do morto, todo o mundo se sente na obrigação de fazer cara de tristeza e de só falar nos últimos momentos do falecido. Aconteceu depois que a vida foi voltando ao seu normal e a conversa ficou leve de novo … De repente – até parece que foi coisa de magia, pois aconteceu ao mesmo tempo -, as três velhinhas, que todo o mundo imaginava mortas, começaram a florescer. E ficaram bonitas como nunca tinham sido quando os seus maridos eram vivos!
Uma delas que só usava birote, cortou e pintou o cabelo e até mesmo começou a usar um batonzinho. Com certeza voltou a conversar com um velho namorado, esquecido, abandonado, pendurado, calado – o espelho, que, com a morte do marido, reaprendeu a falar: “Não é mais preciso que você seja feia”. Ele já se foi. Você está livre para voltar a ser bonita como sempre foi” …
A segunda sempre varria a calçada de chinelo, meia soquete e roupão. Começou a aparecer na rua com uns vestidos de cores vivas que nunca usara antes. De onde os tinha tirado? De algum baú onde teriam permanecido trancados com bolas de naftalina, à espera do grande dia? Ou teriam existido só no baú dos sonhos proibidos, que a presença do marido não deixava realizar, e que agora voavam livres como borboletas que se libertam dos seus casulos?
A terceira de voz grave e sem sorrisos, falava por monossílabos, e poucos eram os que se lembravam de ter visto um sorriso na sua boca. Pois, para surpresa de toda a vizinhança, ela começou a cantar … Cantou velhas canções de amor – de outros tempos em que ela se sentia como namorada …
A ressurreição das velhinhas me fez sorrir de alegria. Mas logo me dei conta do trágico da vida humana: foi preciso que a morte fizesse oi seu trabalho para que a vida brotasse de novo.
Talvez seja pior para os outros existires do que morreres …
( … ) Rubem Alves
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