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Natal cinzento
Entramos na semana do Natal e o frio gela caminhos, vilas, cidades e serranias, mas um frio ainda mais cortante está a entrar pelas frinchas das portas e janelas de muitas mais casas.
O frio que resulta de sonhos arruinados, de empregos perdidos, de falta de sentido para a vida que se vê barrada pela crise, que atira para a miséria envergonhada ou despida de preconceitos centenas de milhares de famílias.
Há muito que não se sentia com tanta força a necessidade de ser solidário e de forçar o futuro desconhecido a romper por uma fresta que nos entregue um raio de luz de esperança. Começa a ser uma multidão excessiva de famintos e deserdados da sorte para que a indiferença produzida pela ideologia que sobredetermina o egocentrismo e o consumismo continue a imperar sem um pingo de humanidade. Daí que Cavaco Silva esteja carregado de razão.
Num momento tão duro, prenunciando dramas ainda maiores, não pode deixar de haver uma escala de prioridade de preocupações e, no topo, não há lugar para outro debate que não seja como vencer o desemprego, atacar o problema da dívida, investir todos os esforços para aumentar a produtividade e a competitividade. Cada vez estou mais convencido de que elegemos um poder sem consciência, tão irresponsável quanto libertino, que não quer ver, ou é incapaz de reconhecer, o país em que vive, e desconhece aquilo que se passa por todo o lado. Habituados a ler a realidade por relatórios que lhes chegam ou do Banco de Portugal ou do Instituto de Estatística ou de qualquer outro instituinte, são alheios à dor e ao sofrimento, indiferentes à amargura com que dia a dia somos confrontados. Sei do que falo, enquanto autarca.
Não existe dia, não existe manhã, nem tarde, não existe uma chegada de correio que não esteja impregnada de pedidos, de súplicas, de aflições, de currículos, de qualquer coisa, de uma bóia de salvação, que evite o mergulho, que parece irreversível no precipício. E não vale a pena recorrer ao cinismo, que enoja, de atirar com este terrível rol de pragas para cima do Governo. Hipocrisia igual teve-a Pilatos, e dela resultou a morte de Cristo.
Fosse o poder que elegemos preocupado com os mais desgraçados e há muito que não teríamos este Governo mas outro, envolvendo todos aqueles que estivessem interessados em fazer sair Portugal deste inferno de fome e de desgraça, omitindo as diferenças, comungando do mesmo interesse comum. Não vai ser assim. Somos aquilo que somos.
Talvez este Natal tão gélido possa fazer ressurgir outro tempo de esperança. Apesar de tudo, é a noite de todas as promessas de esperança e continuo a acreditar nessa fé redentora. Um Feliz Natal!
Francisco Moita Flores, Professor Universitário