Quinta-feira, 10 de Dezembro de 2009
( ..... ) Concretizando, a grande corrupção, ao contrário da corrupção por formigueiro ou corruptela, surge como resultado final da manipulação de um processo administrativo de decisão, através do qual os agentes de suborno e os subornados, compram e vendem um poder decisório em troca de benefícios privados criminosos. Quando a lógica da corrupção toma conta dos serviços, acaba a distinção entre interesse público e interesse particular. Todos os actos passam a ser geridos pela lógica do lucro fácil, do poder arbitrário, do caciquismo, da cunha e do clientelismo.
O acto corrupto torna-se possível pela manipulação – alimentada muitas vezes pela burocracia rígida dos serviços – das regras e das Leis, de forma invisível, graças aos pactos de silêncio e opacidade entre corruptor e corrompido. No fundo, a aplicação da velha máxima de que «a lei é rígida e a prática é mole», transforma-se na mola real dos mecanismos de corrupção.
A violação dos deveres do cargo, do político, autarca ou funcionário – que deviam garantir a igualdade de tratamento dos cidadãos, a proporcionalidade, a justiça, a imparcialidade e a boa-fé, consagrados na Constituição –, tem um efeito de diapasão, com implicações políticas e sócio-económicas corrosivas para todo o aparelho estatal, incluindo o autárquico, e para a sociedade.
Ao reproduzir-se impunemente, a corrupção vai contaminando toda a estrutura pública, criando uma subversão desreguladora, porque a complexa teia de interesses e cumplicidades criada vicia o desenvolvimento do país e do próprio mercado. Surge em todo o seu vigor aquilo que se pode denominar «modelo de capitalismo felgueirense», se quisermos encontrar um chavão explicativo a partir de um fenómeno da realidade nacional actual.
O economista José Silva Lopes, numa entrevista ao Diário Económico, em Junho de 2003, refere estar muito preocupado com o «poder de alguns grupos de interesse no país (...) As corporações impedem o Governo de desempenhar as suas funções. Os lobbies mandam nos governos, não neste (em exercício) em particular. Têm uma influência determinante e são um grande obstáculo às reformas. Há lobbies em todos os países. Portugal também sempre os teve. Mas com a força que têm hoje, não me lembro».
Por seu lado, o Procurador-Geral da República, Souto Moura, numa entrevista ao diário Público, publicada em Janeiro de 2003, refere que «as pessoas (...) não podem deixar amolecer as consciências ao ponto de considerarem banais coisas que não o são porque violam leis, e vão corroendo o edifício do Estado e a sociedade por dentro. Aí, a corrupção é um dos elementos centrais».
Este processo de corrosão pode ocorrer, só para referir alguns exemplos, na Administração Fiscal, quando se trocam luvas por evasão fiscal, na autarquia, quando há a adjudicação de uma empreitada a uma empresa que paga o suborno em troca de outras mais competentes, na Administração Pública, quando ocorre a contratação de favor encapotada em concurso público, na atribuição de fundos europeus, quando são canalizados para empresas criadas para o efeito, sem qualquer capacidade técnica, e não para entidades genuinamente interessadas na formação de activos.
Deste modo, num quadro de desenvolvimento descontrolado da corrupção, o representante da autoridade pública transmuda-se voluntariamente para agente obscuro de um mercado clandestino, com fins pessoais ilegítimos, activista dos princípios da cunha, do clientelismo e do lucro fácil. As suas decisões não obedecem aos interesses do Estado e a critérios legais mas a objectivos mercantilistas. O seu poder de decisão é negociável, corruptível, determinado pelos interesses dos lobbies, e é da concretização destes últimos que ele extrai poder, benefício e enriquecimento pessoal.
A corrupção nos negócios passa a ser o negócio da corrupção. A igualdade e a imparcialidade são uma mera recordação longínqua, distante da vida das repartições ou dos serviços onde tais práticas se instalem. O funcionário público, ou político, corrupto deixa de ser agente do interesse público, colocando-se ao serviço de interesses privados, sejam eles os de empresas, de partidos, ou de pessoas singulares. A criação de uma teia subterrânea de influências e interesses deixa de ser controlável, e dá origem a um poder também ele subterrâneo, e a uma economia paralela.(.... )
Maria José Morgado