Domingo, 29 de Novembro de 2009
NO INÍCIO DA ÚLTIMA LEGISLATURA (2005), O MINISTRO DAS FINANÇAS, CAMPOS E CUNHA, COM DEMISSÃO LOGO DE SEGUIDA, TINHA ESTE PLANO PARA O NOVO FUNCIONÁRIO PÚIBLICO, NO FINAL DE 2009. ESTAMOS CHEGADOS, É SÓ COMPARAR A REALIDADE COM A FICÇÃO SOCIALISTA !
No futuro, todos os outros funcionários do Estado terão regras cada vez mais parecidas com as das empresas privadas (no que diz respeito a férias, folgas e até despedimentos), uma vez que serão admitidos, tendencialmente, através de contratos individuais de trabalho. É esse o futuro reservado aos profissionais de Educação, Saúde e restantes carreiras da folha de pessoal do patrão Estado.
Esta mudança implicará que todos os que até hoje entraram no Estado por nomeação, para exercer outras funções que não as chamadas «nucleares», tenham um regime transitório, mantendo a protecção social, o direito de não serem despedidos e a possibilidade de entrar no Sistema de Mobilidade Especial.
Se usarmos uma lente de aumentar, esta reforma permite traçar um retrato aproximado do «funcionário público ideal»: menos de 40 anos, licenciado ou com formação especializada, leal, zeloso, empenhado e flexível, com espírito de equipa e adaptabilidade de horários, bom domínio de línguas e novas tecnologias, sujeito a avaliação de desempenho criteriosa e progressão na carreira consoante o mérito, tendencialmente admitido em regime de Contrato Individual de Trabalho. Parece um anúncio de jornal a oferecer trabalho, mas não é. Este é o retrato-robô dos funcionários públicos que o Governo quer ter a partir de 2009, como resultado da reforma da Administração Pública (AP). Embrionária, mas em curso.
Até ao final da legislatura, o Executivo mantém ainda outro objectivo: diminuir, em 75 mil, o número de recursos humanos, reduzir as cerca de mil carreiras existentes na Função Pública e criar uma tabela salarial para todos (à excepção dos magistrados). Para chegar a este «Estado moderno», como o Governo gosta de lhe chamar, estão a decorrer conversações com os sindicatos, que levarão a grandes mudanças no sistema de contratações, de remuneração e de progressão na carreira.
A concertação social em torno dos «princípios orientadores» desta reforma deverá ficar encerrada até 11 de Junho deste ano, altura em que as ideias serão vertidas para propostas de lei. Mas Luís Campos e Cunha, ex-ministro das Finanças de José Sócrates, já alertou para o contra-relógio: «É agora ou nunca», escreveu num artigo de opinião, no jornal Público.
Palavras que foram tomadas como um aviso sério, por partirem de um homem que conhece bem a importância desta reforma para o programa socialista (uma vez que foi ele quem a iniciou). Campos e Cunha mantém-se atento ao desenrolar dos trabalhos, mas não presta mais declarações. «Não quero comentar aspectos muito concretos da política do Ministério das Finanças», admite à VISÃO.
A lista negra
O Sistema de Mobilidade Especial (SME) – normalmente designado por lista de supranumerários (nome que nunca aparece na legislação) – é um dos pilares da reforma da AP e um dos processos que mais cedo começará a funcionar. Em traços gerais, o SME vai consistir numa lista, actualizada anualmente, onde estarão todos os funcionários considerados «a mais» nos seus serviços de origem.
A lista de excedentários deste ano só será conhecida depois de as leis orgânicas dos serviços públicos (que foram recentemente aprovadas em Conselho de Ministros) serem publicadas em Diário da República, o que, por sua vez, depende da promulgação, por Cavaco Silva.
O que aconteceu até agora, mais precisamente até 28 de Fevereiro, foi que os organismos de todos os ministérios desencadearam processos de averiguação dos mapas de pessoal, para chegarem à conclusão de quantas pessoas precisam (e quantas dispensam).
Nesta fase, que equivale à primeira parte do PRACE (Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado), o Governo já reduziu os organismos públicos de 518 para 257. Os funcionários, esses, foram sujeitos a entrevistas e inquéritos para classificar as suas funções, salários e necessidades de formação e para averiguar a sua disponibilidade de passarem, por iniciativa própria, para o quadro de supranumerários.
Uma funcionária da extinta Direcção-Geral do Turismo, que participou num desses processos, realizado pela Hay Group, uma consultora externa, aceitou, sob anonimato, falar à VISÃO. «Começámos por preencher um questionário que nos foi enviado por e-mail e que pedia informações curriculares», explica a funcionária. Seguiu-se uma entrevista individual, de 50 minutos, com questões mais específicas. «Aí perguntaram-nos se sabíamos o que ia acontecer, na sequência da reestruturação de serviços públicos. Quiseram saber se teríamos problemas em ir para as listas de excedentários e como víamos a possibilidade de perdermos o vínculo de nomeação à Função Pública.»
A intervenção da consultora terminou com um relatório e não chegou ao ponto de determinar quem seriam as pessoas dispensáveis naquele serviço. Os nomes serão decididos pela tutela, segundo os critérios de mérito e a gestão por objectivos definidos no SIADAP (Sistema de Avaliação do Desempenho da Administração Pública) ou noutro tipo específico de avaliação criado para esse efeito.
Quantos ficarão pelo caminho?
Só depois de avaliados é que os trabalhadores darão entrada nesta lista em que ninguém quer estar. Mais tarde, serão alvo de formação profissional e reiniciarão funções noutros sectores do Estado, consoante as necessidades e as habilitações.
Em tese, o sistema funcionará na perfeição se todos os excedentários forem recolocados em trabalho compatível. Caso isso não aconteça, pode dar-se uma de duas situações: ou o funcionário foi admitido em regime de Contrato Individual de Trabalho e, após um ano sem conseguir colocação, inicia-se o processo do seu despedimento; ou o funcionário tem vínculo efectivo por nomeação e mantém-se indefinidamente em casa à espera de nova colocação e a ganhar menos (redução de 16% no salário ao fim de dois meses e de 33% a partir do primeiro ano). Em qualquer dos casos, a porta está sempre aberta para a desvinculação voluntária, a reforma ou mesmo a demissão com «justa causa» (após dois anos de avaliações negativas e mediante instauração de processo disciplinar).
A mobilidade especial aparece, assim, como uma das formas de cumprir uma promessa eleitoral: reduzir, até 2009, 75 mil funcionários públicos dos actuais 737 774.
Na última segunda-feira, 12, o Correio da Manhã avançava, porém, com um objectivo substancialmente maior. O dobro: «A reforma da AP poderá implicar, nos próximos quatro anos, uma redução da ordem de 150 mil postos de trabalho nos serviços do Estado», de forma a poupar os 4 950 mil milhões de euros inscritos no «Plano de Estabilidade e Crescimento já aprovado pela Comissão Europeia».
A VISÃO fez um pedido formal de entrevista ao secretário de Estado da área, João Figueiredo, mas a resposta foi negativa por se considerar que o tempo é de negociação, e assim será até ao final do primeiro semestre. Restam os sindicatos e especialistas em AP para falar, sem rodeios, sobre as mudanças que aí vêm.
Linhas ocupadas
Todos os sectores – Governo, sindicatos e trabalhadores – querem uma Administração Pública mais eficaz e ágil, mas os caminhos da reforma estão longe de ser conciliadores. «Andamos a clamar a mudança, no sentido da maior eficiência, desde os anos 80», explica Nobre dos Santos, dirigente da Frente Sindical da Administração Pública (FESAP), afecta à UGT. «Neste momento, há voluntarismo de toda a gente, mas a reforma é vista como uma coisa vaga.»
Na opinião deste sindicalista, o que falta à AP não são funcionários competentes, mas uma gestão objectiva, real e transparente. «Num momento em que o trabalho é um bem escasso, é preciso acalmar a consciência dos trabalhadores e explicar-lhes que não é culpa deles, mas da gestão», afirma.
As últimas notícias relacionadas com a reforma da AP, algumas contraditórias, não ajudam a sossegar as hostes. «Dois anos de avaliação negativa dá despedimento», «Sócrates cede à Função Pública», «Horário de trabalho pode aumentar», «Funcionários públicos podem perder regalias nas férias e folgas», «Poupança ameaça 150 mil até 2010» – títulos como estes entupiram os sindicatos. «As 12 linhas que temos aqui na FESAP têm estado permanentemente ocupadas», revela Nobre dos Santos. Quem liga está preocupado, sobretudo, com a possibilidade de despedimento, o futuro das carreiras, as remunerações, a manutenção dos direitos e a mobilidade especial. No fundo, os instrumentos da reforma.
Ao nível das carreiras, já é certo que deixarão de existir as mais de mil actuais, mas ainda não se sabe o número mínimo a que o Governo pretende chegar. A intenção é também que deixe de se fazer sentir «o motor interno automático» (em que a progressão acontece obrigatoriamente por antiguidade) e que se passe a ter em conta o mérito profissional e a avaliação por objectivos (com os respectivos prémios de desempenho, se for caso disso, já em 2008).
No capítulo das remunerações, a proposta do Executivo vai no sentido de reduzir as mais de 500 posições salariais existentes actualmente na Função Pública, criando uma única tabela salarial (aplicável a todos, menos aos magistrados). Há ainda a ideia de acabar com suplementos e complementos especiais, integrando-os no ordenado-base.
Estes «princípios orientadores» permitem aos sindicatos fazer um balanço, ainda que incipiente, da reforma. Contentes por estarem a ser ouvidos, aborrecidos por saberem de muita coisa através da comunicação social, os rostos da habitual contestação ao Governo lamentam que se esteja a caminhar no sentido da precariedade.
Bettencourt Picanço, dirigente do Sindicato de Quadros Técnicos do Estado (STE), chama a atenção para o facto de, até ao momento, o «móbil do Governo» ter sido «a redução do défice». Nobre dos Santos, da FESAP (afecta à UGT), sublinha: «Eles ainda não perceberam que esta maior precariedade de emprego não conduz a maior eficiência.»
Do lado da CGTP, a resposta deverá fazer-se ouvir, nas ruas, durante o mês de Maio. Na quarta-feira, 7 de Março, Ana Avoila, da Frente Comum dos Sindicatos da Função Pública, deixou no ar a promessa de uma manifestação nacional, pouco tempo antes de Portugal assumir a presidência da União Europeia.