Num recente debate no Instituto de Defesa Nacional, António Vitorino fez duas críticas ‘indirectas’ ao Governo e ao seu partido, o PS. Propôs «reformas profundas» na Justiça, onde «temos um problema de ineficácia e inadequação do sistema perante as necessidades da vida actual». E preconizou uma «revisitação à democracia representativa», tendo em conta a «incapacidade actual do sistema de partidos».
As propostas de Vitorino são generalidades sem nenhuma originalidade particular: todos os dias se podem ouvir coisas idênticas, provenientes dos mais variados quadrantes – tal como as ouvimos da parte dele, noutras ocasiões. Mas terem sido feitas no momento em que as fez é politicamente muito significativo.
António Vitorino recusou por duas vezes o lugar de secretário-geral do PS, que lhe fora oferecido numa bandeja dourada, depois das abdicações de António Guterres e Ferro Rodrigues. A aura de ‘eterno desejado’ concedeu-lhe o estatuto de principal éminence grise socialista, comentador permanente da RTP como contrapeso a Marcelo e, ainda, sumo-sacerdote das Novas Fronteiras, o ritual litúrgico com que o PS celebra a ‘abertura à sociedade’ por altura dos períodos eleitorais.
Vitorino trocou a política activa pela advocacia de negócios, mas nunca descurou a sua principesca esfera de influência no interior do PS: joga fora e dentro, está próximo de Sócrates – que supostamente o venera – mas numa posição suficientemente altiva e distanciada para assegurar um espaço próprio. Por isso, seja o que for que diga – e apesar das suas infinitas cautelas para evitar especulações semelhantes às que Marcelo suscita –, Vitorino é sempre objecto de um intenso voyeurismo e as suas palavras são escrutinadas como premonições que um vidente consagrado extrai da sua bola de cristal.
Ora, por pouco e vaguíssimo que seja, aquilo que Vitorino agora disse é suficiente para nos interrogarmos sobre o significado político do seu timing, quando o caso Freeport voltou a abalar a credibilidade do sistema judicial e no momento em que José Sócrates volta a ser consagrado, por uma nova votação esmagadora, líder socialista.
Acrise da Justiça reflecte-se e ‘encaixa’ na crise da democracia representativa – e nem o Governo nem o PS se podem considerar estranhos a nenhuma delas. Não serão, decerto, culpados únicos – até porque a crise da democracia representativa ou das próprias instituições judiciais é uma realidade que atravessa todas as formações partidárias e ultrapassa, largamente, as fronteiras nacionais. Mas o mal-estar que sentimos hoje no país, dramatizado pela crise global em que inevitavelmente mergulhámos, fragiliza de forma alarmante a confiança nas instituições nucleares do Estado de direito democrático – como são o sistema de Justiça e o sistema de partidos. Ora, essa fragilização afecta particularmente o PS e o seu Governo, apesar da actual maioria absoluta de que dispõem no Parlamento.
Tão cauteloso em medir o alcance das suas palavras, Vitorino acaba, afinal, por ser um expressivo porta-voz desse mal-estar que também corrói o PS. Mesmo que ele o não diga ou deixe sequer subentendido, o que verificamos com crescente nitidez é que o PS se tornou refém da sua própria maioria absoluta, de um poder que já não consegue gerir democraticamente por ser pesado demais para os seus ombros, nestes tempos de crise generalizada que ninguém soube prever.
O unanimismo em torno de Sócrates e a falta de concorrência à liderança não são sinais de força, mas de fraqueza, anemia e incapacidade de promover o debate democrático interno (o qual, aliás, é encarado com suspeitas inquisitoriais). É certo que não se trata de uma realidade verdadeiramente nova, pois o horror ao vazio também fez com que Guterres e o próprio Ferro Rodrigues tivessem sido eleitos para líderes por percentagens decididamente anormais num partido pluralista. Mas nunca a cegueira do poder, a incapacidade de ver para além do próprio umbigo, se revelaram tão constrangedoras.
A dissolução da pluralidade partidária nunca chegou a um ponto como este, em que o calculismo táctico e o cinismo dos comportamentos individuais eliminam toda a hipótese de um debate fecundo e de uma efectiva abertura à sociedade, segundo o que seriam os propósitos das Novas Fronteiras capitaneadas por António Vitorino. Aliás, quando um intelectual de formação sólida como Augusto Santos Silva se transforma numa caricatura grotesca de Jorge Coelho (ao confessar o seu gozo de «malhar» em dissidentes e opositores, na linha do célebre «quem se mete com o PS, leva» de Coelho), poucas dúvidas parecem restar acerca do efeito triturador dos pequenos poderes partidários e governamentais sobre as mentalidades supostamente mais educadas.
José Sócrates advertiu, há dias, contra os riscos do proteccionismo. São, de facto, riscos suplementares que ameaçam a economia global nestes tempos de crise sem precedentes. Acontece apenas que a economia é global, mas as democracias são ainda nacionais – e, muitas vezes, como no caso português, essencialmente paroquiais. A tentação do proteccionismo é irracional e tende a agravar ainda mais a crise. Mas à falta de uma democracia global – e de esforços consequentes para promovê-la – os Governos nacionais, sobretudo os dos países mais ricos, são pressionados pelos respectivos eleitorados a proteger os interesses imediatos daqueles de cujo voto dependem, como vemos hoje, por exemplo, no Reino Unido, na França ou na Alemanha (apenas para citar os casos europeus mais relevantes).
Na senda da crise económica mundial está a chegar a crise da própria democracia, tal como a temos conhecido. E Portugal é, para além dos temores do proteccionismo económico que nos penaliza, um pequeno exemplo de democracia em crise, sobre o qual precisamos de reflectir. Urgentemente.
Publicadopor vicentejorgesilva |