200.000!-
Mar de 2004
Fevereiro 15, 2009
Arquivado em “O”
Verdadeiro murro no estômago deste país de faz-de-conta, a publicação dos números da fome. Afinal, há um outro e imenso Portugal. Paredes-meias com o país oficial, urbano, e festivo
Porém, longíssimo dele.estão dois milhões de pobres. Dos quais, pelo menos duzentos mil morrem de fome…
Duzentos mil que nada têm de abstrato. Duzentos mil que são gente.
Em cada um, há um pouco de todos os outros. Mas percebê-lo implica consciência, sensibilidade, responsabilidade. Sendo manifesto que nada de essencial mudará enquanto, coletivamente, não nos forçarmos a reconhecer a exata medida em que a sua desventura radica no nosso fracasso.
O progresso feito à custa da pobreza e da exclusão de tantos deve ser-nos intolerável. Autêntica e politicamente intolerável.
O sentido dessa intolerância obriga, aliás, a alterações profundas do “status quo”. Nomeadamente, ao nível da própria agenda política.
Com efeito, entre nós e em geral no primeiro mundo, há muito que a pobreza e a fome não constituem preocupação das forças políticas vocacionadas para o exercício do poder. Os níveis de bem-estar e conforto alcançados parecem ter implicado uma natural superação de tais temáticas. O fenómeno é olhado como algo residual, emergindo apenas em determinadas bolsas de maior dificuldade social (urbana, industrial e, mais recentemente, até rural), sem qualquer influência na discussão dos modelos de desenvolvimento preconizados.
Em relação à pobreza há mesmo algo de profundamente reacionário na política contemporânea. Porque esta assume o determinismo - sempre houve e sempre haverá pobreza. E, portanto, tomando-a como inevitabilidade histórica, qualquer proposta de combate surge como algo politicamente vão e inconsequente.
Ora, a partir deste caldo cultural, a pobreza é remetida para as franjas da discussão política. E, frequentemente, fica mesmo às portas da intervenção institucional.
Assim, uma certa esquerda, extremista e revolucionária, tem-se arrogado o exclusivo. O discurso ao primário, assente na habitual vulgata anticapitalista (e, com os anos, por decorrência, também antiglobalização), eivado de ataques e críticas, mas geralmente incapaz de qualquer contributo sério para a solução Assumem uma pretensa ideologização da questão, sustentando que só a esquerda tem condições para a efetiva refutação da pobreza, já que a direita, ao recusar um paradigma igualitário, fomenta, intrinsecamente, a iniquidade e o desequilíbrio.
Num registo diferente, para lá das fronteiras da política oficial, o tema da pobreza mobiliza outras militâncias. Mas sempre numa lógica marginal.
Das várias instituições de solidariedade social As mais diversas organizações ad hoc, passando pelo decisivo papel da Igreja Católica, É facto que se consolidaram, um pouco por toda a parte, redes de apoio que acodem, numa abordagem de proximidade, às situações mais dramáticas (A <quem tem duas túnicas reparta com quem não tem nenhuma e quem tem mantimentos faz o mesmo», Lc 3,11). Contudo, fazem-no sem nunca desafiar o sistema, sem nunca o pôr em causa em causa. Como que agindo num quadro de necessidade, cujo sentido jamais questionam.
Portanto, entre a ausência de influência dessa esquerda anacrónica e o estatuto apolítico desta malha de solidariedade, a pobreza fica entregue a si própria. Politicamente não existe. Não se faz causa, não é bandeira. A esquerda já reconhece e, por isso, estiola. A direita, pior, ignora-a e, assim, claudica.
No arco do poder, a demissão política é então, total e escandalosa.
Como poucos, o tema interpela, convoca e responsabiliza. Mas a verdade É que os atores do momento não reagem. Aqui e ali, se o pretexto surge, o apelo parece dirigido ao bom coração de cada um. Mas nada mais. Como se fosse matéria de corações!
E o silêncio pesa. Tal é o deserto de ideias e de propostas de ação.
Condenado à abundância e incapaz de resolver a necessidade mais extrema, o mundo parece resignado a conviver com os seus pobres.
Mas se a política pode ser sonho, vale a pena pensar no dia em que o incómodo daqueles que pagam impostos e legitimam governantes se fará ouvir. O dia em que todos, homens e mulheres de reta intenção, levantaremos a voz para denunciar a falácia de uma democracia que condescende com insuportáveis carências básicas.
Porque, nesse dia, os 200.000 sentar-se-ão à nossa mesa. E nós, pelo exercício da exigência responsável, teremos, enfim, recuperado a nossa dignidade essencial.
Sofia Galvão
24-03-2004
Jornal de Negócios
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