É um dos episódios mais esquecidos da história portuguesa do século XX. Os protagonistas foram Salazar, o eminente médico Bissaya Barreto e centenas de figurantes. Bissaya ficou conhecido por ser o primeiro salazarista de que houve memória: na universidade costumava dizer a António que este ainda marcaria o país.
Tinha razão. Salazar fê-lo e o médico seguiu-lhe o rasto; sob a protecção do presidente do Conselho tornou-se influente e criou um novo conceito de saúde onde leprosos, tuberculosos e dementes passaram a ter sítios com condições humanas, mas longe da vista das populações. Assim nasceram o Sanatório de Celas, o Hospital dos Covões e numerosos orfanatos, bairros económicos e até o célebre Portugal dos Pequeninos. Não querendo comparar Salazar com Hitler, Bissaya foi uma espécie de Albert Speer português. Se Salazar moldou a alma portuguesa, o outro ajustou-a a um corpo feito de pretensa caridade.
Quero contar-lhe a extraordinária história de Abel Almeida. Conheci-o há quase dez anos e não tenho a certeza se é vivo ou morto. Recordo a minha tentativa para que Jorge Sampaio o condecorasse, cheguei a enviar-lhe a sua história, mas infelizmente não foi possível. Se ainda for vivo, nas próximas semanas o direi. Talvez Cavaco Silva lhe faça justiça.
Era uma criança de 14 anos quando uma brigada o apanhou em Arganil. Um qualquer vizinho denunciara que o rapaz era leproso e, sem o deixarem despedir-se da família e dos amigos, encaminharam-no para o Hospital do Rego, em Lisboa. Ali ficou dez anos, ali se apaixonou pela Deolinda, ali julgou passar todos os dias do resto da sua vida.
Mas Bissaya Barreto tinha outras ideias. Convencera Salazar a decretar que todos os leprosos fossem encerrados no mesmo sítio e o mais longe dos olhares. Escolheu-se a aldeia fantasma da Tocha, entre Aveiro e a Figueira da Foz, e construiu-se uma das mais modernas leprosarias que a Europa vira até então: 15 hectares com todas as condições.
É um dos episódios mais esquecidos. Dezenas de brigadas médicas, acompanhadas por polícias, passaram o país a pente fino e internaram centenas de portugueses. Após identificados e colocados na carrinha, os seus bens eram queimados. Se tivessem filhos saudáveis, estes deveriam ser entregues a instituições sociais ou ficar em casa de familiares.
O regime decretou - e Bissaya Barreto defendeu que era a única forma de oferecer alguma dignidade a pessoas vítimas do ostracismo da comunidade. Por isso, as rádios oficiais pediam aos cidadãos para denunciarem os sítios onde viviam leprosos; por isso, arrombavam portas e empurravam os doentes para as carrinhas. O Ministério do Interior organizou os procedimentos e comunicou ao país que, finalmente, aqueles cidadãos teriam também direito a uma vida «digna e prazenteira».
Em 1947, quando os leprosos ultrapassavam o portão do Hospital Rovisco Pais sabiam que a sua vida terminara. Deixavam de poder perguntar pelos filhos e o passado era reduzido a cinzas. Logo à entrada os homens eram separados das mulheres. Bissaya Barreto, naqueles primeiros meses, explicava pessoalmente a todos os leprosos o manual de procedimentos e o código de disciplina. Dentro do hospital estava instalado um posto da GNR onde trabalhavam 17 guardas-civis armados com paus. Desde o primeiro dia, os doentes apelidaram-nos de guardas de pau .
Abel já completara os 24 anos quando o levaram do Rego para a Tocha. Chegou já de madrugada - e, na manhã seguinte, o director falou-lhe a ele e aos novos da obrigação da missa aos domingos, do cinema uma vez por semana, do trabalho pelo qual ganhariam um ordenado, do desporto para quem o pudesse praticar.
- E Deolinda? - perguntou ele.
O contacto entre homens e mulheres não seria admitido em caso algum, respondeu o director.
Aos domingos, Abel esperava-a por entre grades e, à sua passagem, gritava-lhe promessas. Depois, durante a semana, esgotava-se nos requerimentos em folhas de 25 linhas e tentava arregimentar apoios. Anos durou a sua luta. O responsável pela segurança, Santos Silva de sua graça, condenou-o algumas vezes a cumprir pena na solitária, cubículo onde não entrava uma réstia de luz. Ele nunca desistiu. E a festa foi grande quando, dez anos depois, em 1957, pôde casar com Deolinda numa cerimónia dentro do Rovisco Pais.
Chegaram a estar na Tocha mais de mil internados. A década de 60 foi, talvez, o período de ouro da leprosaria. Muitos eram ainda jovens o suficiente para aguentar as drageias de sulfona e as diálises sem perda irremediável de energia. Abel transformou-se num verdadeiro líder: forçou a administração a fundar um jornal, a que chamou A Luz, mas ao fim de poucos números um conflito entre si e o padre Gabriel, o censor, terminou com a aventura. Abel queixou-se aos responsáveis de que era impensável alguém que não dominava bem o português mexer nos textos de uma maneira tão desbragada. A Luz acabou - e o padre não haveria de ficar muito tempo na Tocha.
A 25 de Abril de 1974 os doentes acordaram com notícias da revolução. Quase todos tomaram partido pelos capitães. Para aqueles homens e mulheres, o Estado Novo era o responsável pela morte dos seus passados. Juntaram-se e formaram uma comissão de crise. António Coelho, leproso que depois militou no Partido Comunista, desejava uma sublevação que implicava fechar a porta aos funcionários e administradores. Abel Silva não concordou. Explicou que nas alturas mais complicadas era fundamental manter a cabeça fria; ora, infelizmente eram doentes e precisavam de cuidados.
Decidiram organizar-se para receber uma unidade do Movimento das Forças Armadas - que escolheria Abel como representante da revolução. Ele levou a sua responsabilidade a sério, organizou as pessoas por comités e delegou responsabilidades - mas depois desse primeiro contacto nunca mais o MFA, ou qualquer outro poder, entrou no Rovisco Pais.
Esta é a história de Abel. Quando o conheci, há quase dez anos, estava feliz. Vencera a sua derradeira batalha: conseguir que os 38 últimos leprosos do Rovisco Pais lá pudessem ficar até morrer. A transformação da leprosaria num centro de reabilitação assustou os que restavam. Mas o grande líder da Tocha utilizou a alma de que é feito e ganhou mais uma vez.
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