Domingo, 30 de Maio de 2010

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Entrevista

ntrevista

“Perderam-se muitos valores depois do 25 de Abril”

Isabel Jonet, presidente da Federação dos Bancos Alimentares Contra a Fome, diz que os portugueses perderam valores depois do 25 de Abril.

 

Por:António Ribeiro Ferreira, Correio da Manhã, Nuno Domingues, Rádio Clube

 

Correio da Manhã/Rádio Clube – São os mais pobres que vão pagar esta crise?

Isabel Jonet – Eu receio que sejam os mais pobres que também vão pagar esta crise. As medidas que têm sido tomadas, nomeadamente o acréscimo da taxa de 5 por cento do IVA para todos os produtos, incluindo os mais básicos, e ainda estas medidas de redução de prestações sociais mais baixas vão incidir em todas as camadas sociais, com especiais repercussões para os mais desfavorecidos.

ARF – Ainda por cima há muita gente que depende do Estado, não é?

- Eu não tenho sido adepta da subsídio dependência e por diversas vezes tenho dito que é preciso evitar comportamentos acomodatícios. No entanto, é preciso não esquecer que muitas das pessoas que caem no desemprego, ou que estão desempregadas, e muitos de longa duração, deixaram de ter lugar no mercado de trabalho.

ARF – Ficam sem rede de segurança?

- Repare, são situações difíceis de alterar sem se fazer um acompanhamento quase um por um. Essa é a razão porque tenho defendido a necessidade de se reestruturar a rede que está mais próxima dessas pessoas. Porque só com proximidade, muito calor humano, só com muitos afectos é que se pode ajudar a mudar a vida dessas pessoas.

ND – Temos um Estado Social muito distante?

- O Estado é, por definição, distante. O Estado não tem de ser próximo. O Estado tem de ser distante e muitas vezes tem que ter medidas que sejam mais universais. No entanto, estas situações requerem quase soluções um a um.

ARF – O Estado é distante e com a crise tem muitas dificuldades em manter os apoios sociais. A situação ainda vai ser pior?

- Estamos num tempo particularmente difícil porque em Portugal não se vê saída a curto prazo para esta crise. E estas pessoas, daqui  a dois, três anos, quando a máquina da economia voltar a funcionar, têm mais dois ou três anos em cima e continuam com as mesmas fracas qualificações.

ARF – Fora do mercado de trabalho? E os jovens não conseguem lá entrar, não é?

- É verdade. Temos numerosíssimos jovens que chegam ao mercado de trabalho com licenciaturas, ou muitas vezes pseudo licenciaturas, e que estão a ocupar estes lugares que podiam ser desempenhados por pessoas menos qualificadas.

ARF – Como no caso recente do novo espaço do IKEA.

- Esse é um exemplo gritante. Mais de 56 por cento dos candidatos têm licenciaturas. Mas é sobretudo pela injustiça a que condena as pessoas que têm menos qualificações. Esses eram os empregos deles e que deixam de ter. E também pela injustiça que cometemos para com estes jovens que se prepararam para ter um emprego mais qualificado.

ARF – A culpa é de quem? Do Estado?

- O Estado não pode interferir aqui. Tem que se deixar o mercado funcionar e sobretudo têm de ser as empresas e os empresários a gerar novos empregos. Mas para isso têm de haver condições económicas, fiscais.

ARF – O Estado só pode ser responsabilizado por muitas dessas pseudo licenciaturas, como lhes chamou.

- E pode adoptar medidas que incentivem as empresas e que promovam estes tipos de empregos. No entanto, temos de ter consciência que algo no mundo mudou. Mesmo que as empresas portuguesas sejam muito competitivas e que haja mais fábricas de têxteis no Norte, nós temos uma concorrência de Leste a que não estávamos habituados.

ARF – É uma concorrência feroz.

- E não é uma concorrência justa.

ND – Não tivemos tempo para nos preparar para ela?

- Não nos podemos adoptar. O mundo muda muito rapidamente. Foi explosiva a abertura à China e aos outros mercados emergentes. Esta concorrência ainda por cima não é justa. Não estamos a lutar com armas iguais. Na China, na Índia e em outros países a legislação laborar é totalmente diferente. E nós não temos armas para concorrer com eles. Não é o mesmo jogo.

ARF – Temos de ter outras armas? Temos de regredir?

- Não podemos regredir. Temos que ter outras armas. Há a arma da inovação e sobretudo uma grande arma, que é a arma da competitividade no trabalho. Os portugueses, quando vão para estrangeiro, são muito produtivos. Porque é que em Portugal a produtividade é baixíssima?

ARF – É por culpa de quem? Dos empresários? Do Estado? Das pessoas que em Portugal têm hábitos diferentes?

- Temos de procurar em cada um de nós onde está a culpa. As culpas nunca são colectivas. São sempre um somatório de culpas individuais. Há que aumentar a competitividade e há que trabalhar. Nos últimos anos muitos portugueses encostaram-se.

ARF – Encostaram-se ao Estado?

- Encostaram-se a tudo. Encostaram-se à própria vida. Encostaram-se ao Estado, encostaram-se aos subsídios, encostaram-se ao não fazer bem, encostaram-se à não necessidade de rigor, encostaram-se à não necessidade de disciplina.

ND – Então a crise é justa? É um castigo justo?

- Não há castigos justos e esta crise não é castigadora. Esta crise castiga-nos, mas não pode ser justa. Esta crise é fruto de um conjunto de circunstâncias e nós somos mais atingidos por ela porque não estávamos suficientemente preparados. Eu penso que desde o 25 de Abril foi-se assistindo, quase impavidamente, a uma degradação de tudo. Perderam-se muitos valores. E quando eu digo valores, é todos os valores.

ARF – Já agora, quais valores?

- Valores espirituais e universais, mas são também os valores riqueza. Produzir riqueza num determinado País não significa ficar com os bolsos cheios de dinheiro. Produzir riqueza para um País significa aumentar o PIB, aumentar o que há para distribuir por todos. E confundem-se muitas vezes estes conceitos de riqueza lucro com riqueza valor. E aquilo que nós temos feito nos últimos anos, muitos anos, é delapidar esse valor em vez de construir valor.

ARF – Delapidámos valor em que sectores?

- Em todos. Nas empresas, na educação, no dia a dia e temos vindo infelizmente a passar a gerações mais novas mensagens incorrectas. Todos os jovens que estão nos liceus e universidades vão ter que lutar muito para ter um espaço no mundo. Porque o mundo é muito maior e muito mais árduo e é muito mais facilmente acessível.

ARF – A educação que está a ser dada aos jovens não se baseia no facilitismo e no laxismo? Tudo é fácil, tudo se resolve?

- Parece que tudo é fácil, mas a vida não é fácil. Nada se faz sem esforço e eu digo sempre aos meus filhos que o êxito não é uma dávida, é uma conquista. Hoje somos levados a esquecer o trabalho que não vê. É o que tem faltado na sociedade portuguesa. É valorizar todo o trabalho que é necessário para construir algo.

ARF – Voltando à crise. Quantas pessoas são apoiadas hoje em dia pela Federação dos Bancos Alimentares?

- Temos 17 bancos alimentares e isso permite cobrir um maior número de instituições. Neste momento apoiamos 1700 instituições e essas instituições chegam a 250 mil pessoas. Mais de 2,5 por cento da população portuguesa recebe no seu prato um alimento que vem de um banco alimentar. São 90 toneladas de alimentos todos os dias do ano. E cada instituição é responsável por cada grão que recebe de um banco alimentar.

ND – A recolha de alimentos este fim-de-semana é a maior acção de voluntariado que existe em Portugal neste momento?

- Sim, sem dúvida. Sobretudo, é a maior manifestação de voluntariado organizada. Esta campanha já se repete desde 1992. É a 37 ª campanha que fazemos. Sempre igual. Esta regularidade é geradora de confiança. Os portugueses conhecem esta campanha e reconhecem-nos na rua.

ARF – Teme que a crise tenha algum efeito na adesão das pessoas?

- Não tenho essa expectativa. Aliás, o tema desta campanha é que basta uma pequena contribuição para resultar numa enorme ajuda.

ND – Onde é que se encontram uma sociedade com menos valores, mais individualista, mas que é capaz de se mobilizar desta maneira?

- Numa única palavra: confiança. É a transparência da actividade do Banco Alimentar que gera confiança. Se uma pessoa quiser doar um pacote de leite num supermercado e quiser seguir esse pacote de leite pode marcá-lo com uma cruz e seguir o seu percurso até à mesa de quem precisa.

ARF – Há novos pobres em Portugal?

- Há, há novos pobres. Há sobretudo uma categoria de pessoas que tradicionalmente nunca necessitariam de pedir ajuda. E continuam a haver os velhos pobres. Não nos podemos esquecer disso e que são basicamente os idosos. E depois há as crianças e os desempregados de longa duração.

ARF – Para estes o destino é a pobreza?

- O grande problema em Portugal é que com esta crise e com a não existência de tecido produtivo muitas pessoas que podiam ter um emprego ou até às vezes mudar de emprego a meio da vida deixaram-no de o poder fazer. Uma pessoa que perde emprego aos 45 anos não volta a arranjar emprego tão cedo. E estamos a meio da vida.

ARF – Ninguém as quer.

- Ninguém as quer. Quando as pessoas têm maturidade suficiente para disseminar os valores da própria empresa vão-se embora. E pergunto-me como é que as empresas podem ser fortes se não têm os velhos para ensinar a cultura de cada empresa? E isso perdeu-se.

ARF – Há muita pobreza envergonhada?

- Estas pessoas dificilmente conseguem admitir, até perante elas próprias, que deixaram de pertencer a um grupo de consumo. E a grande pobreza envergonhada é aquela que não admite que deixou de pertencer a um grupo de consumo. E isso é muito preocupante.

ARF – É o consumo a todo o custo?

- É sinal dos tempos em que se vive. Em que a identificação com os grupos e as referências é feita por padrões de consumo.

ARF – E daí o grande endividamento das famílias.

- Vão endividar-se para se manterem nesses grupos de consumo. Tem que se regressar ao que é essencial. É necessário baixar a fasquia. Para as pessoas perceberem que não é preciso estar naquele patamar de consumo porque não é indutor de felicidade. As pessoas confundem hoje em dia, muitas vezes, ter com o ser. Não é o ter que gera felicidade.

ARF – Essa é uma tarefa ciclópica, não é?

- É um desafio.

ND – Não é um problema português?

- Não, Não é possível continuar a viver, até a nível global, num mundo que desperdiça muitas das suas riquezas. Tudo se deita fora. É um afogadilho de consumo que desperdiça recursos que são escassos a nível planetário. Não é possível viver assim.

ND – Concorda com a ideia de que os beneficiários de subsídios do Estado têm de trabalhar para a comunidade?

- Eu penso que todas as pessoas que recebem prestações, desde que tenham saúde, deviam trabalhar. Não trabalhar é a coisa pior que pode acontecer a uma pessoa. E sobretudo porque se encosta. E deviam ser limitadas no tempo quanto possível. Mas este trabalho não pode ser confundido com trabalho voluntário. O trabalho voluntário é aquele que a própria pessoa quer dar. E este é um trabalho imposto.

ND – Há falta de voluntariado em Portugal?

- Eu acho que não. O voluntariado é extraordinário em Portugal. E começa agora a haver como expressão de cidadania activa. Está a ser mais profissional.

ND – Mas isso não é muito visível.

- O voluntariado não precisa de ser visível. Quando mais invisível for, melhor.

ARF – Os políticos atrapalham muito a actividade do Banco Alimentar?

- Não. O que tem sido feito tem sido bem feito. Cada um tem o seu papel. Cada macaco no seu galho. Eu não sei nada de política, nem quero saber. O que sei fazer é gerir uma instituição de solidariedade social que ajuda os pobres a alimentarem-se e a gerir outra instituição que aumenta a capacidade de resposta das instituições do terceiro sector. E isto sabemos fazer bem. Não queremos fazer mais nada.

ND – Tem muitas solicitações dos políticos?

- Não, já sabem que o Banco Alimentar está aberto a todas as pessoas boas, que de forma anónima e desinteressada queiram dar o seu tempo por uma causa. 

publicado por luzdequeijas às 11:41
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